quinta-feira, 23 de maio de 2013

Da janela do prédio ao lado

Tão logo acordou, abriu a janela do seu quarto e contemplou a vista para a sacada do prédio ao lado. Ficou surpreso ao perceber que não havia mais cortinas na janela... ainda ontem o apartamento abrigava um velho senhor, cuja idade ele podia apenas deduzir. O Sr. era surdo e, por isso, nunca trocaram mais que uns sorrisos de cumprimento quando, por acaso, seus olhares se cruzavam.

Por pouco mais de uma semana, o apartamento permaneceu vazio e inabitado. Só com as paredes brancas e o assoalho escuro, o lugar parecia triste e frio e nem de longe lembrava o lar com móveis rústicos que um dia houve ali. Foi só na segunda semana que, enfim, uma imobiliária veio colar novos cartazes de "aluga-se" e aquilo o fez se perguntar o que teria acontecido ao velhinho. Ao fim de uma quarta-feira, viajou a trabalho e voltou apenas dois dias depois.

Foi ao bar da esquina, encontrou os amigos e bebeu um pouco. Era um rapaz novo e bem apessoado. Usava barba levemente longa e os cabelos bem curtos, quase careca. Gostava de cuidar de si, mas não trocava a companhia dos amigos em um barzinho por algumas horas na academia. Creditava sua boa aparência ao pai, um negro que mesmo depois de certa idade, permanecia forte, e à mãe, japonesa. Sua genética o tornou magro e resistente e ele estava satisfeito. Na manhã seguinte, como fazia em todas as outras, abriu a janela assim que acordou e teve, então, uma nova surpresa: caixas lotavam a sala do apê ao lado.

No domingo, pouco antes do almoço, enquanto tomava o chimarrão e beliscava os aperitivos na sacada, viu pela primeira vez a mulher que acabara de se mudar. Ela vestia calças largas, de abrigo, e um moletom justinho e desbotado. Os cabelos estavam presos num rabo de cavalo, mas de vez em quando, alguma mexa teimava em cair. Eles pareciam longos e tinham um tom quase avermelhado. Ela era muito bonita e, sozinha, ia de um cômodo a outro, perdida em uma labirinto de papelão.

Por quase uma semana inteira, o rapaz acompanhou a saga da jovem vizinha, até que ela finalmente terminou de organizar os móveis e seus pertences. Ele sabia que tinha uma vista limitada, apenas um enquadramento da vida alheia, mas por algum motivo, sempre que acordava ou sempre que chegava em casa, ia para a janela vê-la.

Viu quando ela, distraída, saiu do banho enrolada na toalha e havia esquecido a janela aberta. Foi meio minuto até que ela cortasse sua vista, fechando as cortinas, mas ele gravou na memória a imagem dos cabelos castanhos-quase-vermelhos molhados, que caíam sobre seus ombros. Gravou a aparência de seu rosto sem nada de maquiagem e achou que as sardas lhe caíam bem.

Em uma das raras sextas-feiras que ficou em casa, viu-a pedir pizza, abrir um vinho (que ele esperava que fosse seco, o seu favorito) e ler um livro. Na noite anterior, ouviu-a brigar pelo celular com o que deduziu ser seu namorado. Ouviu as palavras "nunca mais" ditas com determinação, embora em meio a soluços de choro, e assistiu a todas as fases da superação de término de relacionamento sem nunca ter trocado com ela mais que um sorriso nas raras vezes em que seus olhares se encontraram.

Mudou seus hábitos para vê-la ainda mais. Comprou uma rede e a colocou na sacada, como ela tinha feito já em seu primeiro dia ali e, independentemente do frio que fazia, deitava lá para ler um livro nas tardes de domingo, enrolado em uma manta. Deixou o cabelo crescer um pouco e passou a aparar a barba com mais frequência, embora nunca a tivesse tirado por completo. E, por fim, comprou um tênis de corrida.

Conversou com ela pela primeira vez quando se encontraram na porta de saída dos dois prédios, prontos para correr. Mal sabia ele que, durante todo aquele tempo, ela também havia acompanhado cada passo do exótico vizinho, " um negro com os olhos puxados e de corpo bem torneado", como ela o descrevia às amigas.

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